Em decisão liminar na Reclamação
14.145, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ayres Britto,
suspendeu o concurso público para cargos da carreira policial federal até a
republicação dos editais com a previsão de reserva de vagas para deficientes. A
ordem judicial tem provocado debates sobre a presença de deficientes no
universo policial. O primeiro sentimento é o de que as demandas inerentes à
atividade policial não se coadunariam com impedimentos corporais e restrições
de funcionalidades e habilidades que signifiquem deficiência, mesmo após adaptações
ambientais e remoções de barreiras.
Para o Ministério Público Federal, no
Recurso Extraordinário 676.335 que deu ensejo à interposição da reclamação, a
omissão nos editais é uma falha inconstitucional por violação aos princípios da
reserva de vagas, da igualdade, da dignidade da pessoa humana e da ampla
acessibilidade ao trabalho, todos previstos na Constituição Federal. Sem
dúvida, os argumentos do MPF sinalizam que, muito mais que uma questão dos
domínios da saúde, deficiência é uma questão de justiça. No entanto, a
generalidade e a abrangência dos argumentos denotam que as peculiaridades do
caso foram ignoradas — e é exatamente sobre isso que o STF deverá se manifestar
para decidir.
A reserva de vagas em concursos
públicos é uma política pública de ação afirmativa, que segrega para promover a
inclusão de deficientes no mercado de trabalho. Ser deficiente é condição para
pleitear o benefício. A reserva de vagas é medida de natureza similar às cotas
em universidades, e por isso se ampara em fundamentos comuns, como o interesse
na diversidade e a promoção de oportunidades às minorias políticas para
promover as capacidades humanas e a igualdade. A perspectiva dworkiana de
justiça permite afirmar que é o insulto do desprezo pela diferença que também justifica
ações afirmativas de reserva de vagas.
O princípio da reserva de vagas não tem
aplicação isolada e invoca interpretação conjugada com os demais princípios
afetos ao tema, em especial, com o princípio da igualdade. Nesse ponto,
especificamente no caso do concurso para a carreira policial, o argumento do
MPF sobre violação do princípio da reserva é inconsistente, pois inexiste
ruptura da igualdade por razões de discriminação negativa — para marginalizar,
oprimir e apartar do convívio social.
A não previsão de reserva se justifica
por motivos de segurança individual do futuro policial, de padronização de ação
policial e de garantia de treinamento operacional sem distinção para todos
policiais, que devem estar de prontidão para prestar serviço cujo risco
dispensa prova, ainda que estejam lotados em funções burocráticas e
administrativas. Aliás, o exercício dessas funções não dispensa o policial do
porte de arma nem o isenta de obedecer às ordens de missão policial para
cumprir mandados de busca e apreensão, prisão cautelar e/ou flagrante e
incursões em campo.
A discriminação é positiva, porque não
se alimenta de abominável desprezo pelo deficiente, ao contrário. É calcada em
motivos determinantes de organização para a sobrevivência da pessoa no universo
policial, em que aptidões e preparo intelectual são fundamentais, mas não
autorizam subjugar treinamento físico e de tiro que aumentem as chances de
preservar a integridade de policiais, seja no âmbito das instalações da
repartição ou delegacia, seja em operações policiais, intervenções em
logradouros públicos e privados e investigações de baixo risco.
O argumento da igualdade não se
sustenta a qualquer custo, e não é toda discriminação que gera ilegalidade. O
STF também deverá ponderar em que medida o argumento do princípio da dignidade
da pessoa humana, como poderosa afirmação moral para os direitos humanos, pode
adquirir contornos de armadilha, desamparo e vulnerabilidade aos deficientes no
exercício da profissão policial — esse princípio não é um superprincípio. Essa
é uma expectativa legítima da sociedade, inclusive porque o Poder Judiciário
deve ser provocado a tomar decisões que reforcem a crença na legalidade, sem
enfraquecer a crença no sentimento de justiça, que deflui da perfeita sintonia
da decisão às particularidades do caso concreto.
O caso do concurso para cargo policial
compelirá o STF a considerar os desdobramentos práticos de sua decisão,
inclusive porque a imposição da reserva de vagas para cargos policiais não
permite deduzir que os candidatos deficientes estarão automaticamente liberados
dos testes físicos de aptidão e dos testes médicos, que têm natureza
eliminatória. A decisão do STF deverá inspirar-se na lição habermasiana de que
a jurisdição deve satisfazer condições de consistência e de aceitabilidade
racional.
A aprovação no concurso para policial
depende de desempenho em testes físicos, que incluem salto em distância,
corrida, natação e barra dinâmica, inclusive para mulheres. Candidatos
deficientes com impedimentos corporais e restrições de habilidades motoras
provavelmente não atingirão os índices mínimos, em especial de posse da
informação de que alguns não-deficientes não os alcançam, mesmo em condições
favoráveis. Os índices mínimos são elevados — e recrudescidos durante o curso
de formação na academia nacional de polícia.
Parâmetros de aferição sobre aptidão
física muito diferenciados ou propostas de isenção absoluta de testes físicos
para deficientes poderão causar a descaracterização da natureza do cargo, e,
sobretudo, distorção da incidência do princípio da isonomia entre os futuros
policiais. Essa questão é bastante delicada, até porque já serviu, noutros
tempos, como argumento para insinuar sobre uma inconveniência operacional
causada pela presença de mulheres no universo policial.
Todavia, adaptar critérios de testes
físicos em função do gênero não se aproxima do desafio de implementar testes
físicos para deficientes em concurso público para a carreira policial, em
especial diante da variedade de impedimentos corporais e restrições de
habilidades motoras, sensoriais e cognitivas. Mesmo que haja isenção de testes
físicos, os riscos da profissão serão iguais para todos, deficientes e não
deficientes — mas os deficientes arcarão, sozinhos, no dia a dia, com o agravante
do despreparo operacional para autodefesa pelo simples fato de ser policial
federal.
É inevitável questionar sobre como
serão aplicados os testes e provas de tiro — em que há contagem de tempo para
disparo ao alvo e movimentação — com pistolas, submetralhadoras e fuzis, entre
outros armamentos pesados, durante o curso de formação. Todo policial tem porte
de arma funcional e, ao menos na Polícia Federal, acautela uma pistola
semiautomática com calibre 9mm, que civis não podem portar. Mas não é só. O
reconhecimento da possibilidade de deficientes no universo policial deslocará
para o centro do debate os candidatos-limbo: nem deficientes nem aptos pelo
rigor do teste médico, que também é etapa eliminatória do certame.
Se a liminar concedida pelo ministro
Ayres Britto for confirmada pelo Plenário, situações-limite surgirão. Mantidas
as exigências médicas nos termos dos editais, uma pessoa com acuidade visual
igual a 20/50 em um dos olhos e 20/20 no outro é inapta para ocupar cargo
policial. Mesmo não sendo cega por enxergar com os dois olhos, essa pessoa
tampouco é considerada portadora de visão monocular. Não poderá pleitear,
portanto, com base na Súmula 377 do STJ, livre concorrência dentro da margem
reservada aos deficientes.
Não escapa do rigor dos testes médicos
nem a pessoa com desvio acentuado do septo nasal nem quem possua deformidade
congênita com dedo extranumerário em um dos pés, sem impacto funcional, os
quais não são deficientes — nem à luz do Decreto 3.298/1999 nem a partir do
critério da desvantagem social trazido pelo modelo social da deficiência. Salvo
se houver uma revisão profunda e um abrandamento amplo das exigências médicas
para acesso aos cargos policiais, que elimine o limbo, a previsão de reserva de
vagas causará sérios impasses sobre o que é exigência justa para acesso à
carreira policial, polarizando deficientes e não-deficientes que apresentem
impedimento corporal que não gere desvantagem social e, portanto, não signifique
deficiência.
O argumento da ampla acessibilidade ao
trabalho merece ressalvas. Seja para deficientes ou não-deficientes, as
relações de trabalho representam espaço de proteção e esfera importante da
sociabilidade, além de mecanismo de mobilidade social. Sem dúvida, a reserva de
vagas é uma chance para o deficiente sair do espaço de subalternidade e de
reclusão doméstica em que vive comumente, muito embora a disputa dentro da
margem reservada seja uma disputa da elite de deficientes — aqueles poucos que podem
estudar para passar nas provas de conhecimento. É evidente que a reserva de
vagas desmistifica o deficiente como sujeito não produtivo.
No entanto, estudiosos do campo
sociológico da deficiência questionam o valor de centralidade dado ao trabalho,
e propõem uma reflexão que valorize aspectos de cidadania menos atrelados à
função econômica, inclusive porque nem todos deficientes, mesmos após
reestruturação das relações de trabalho, remoção de barreiras e ajustes,
poderão trabalhar. Em algumas situações, não poderão desempenhar algumas
tarefas, embora possam executar outras — nem todos os tipos de trabalho estão
ao alcance de todos, deficientes e não deficientes. O STF deverá responder se é
razoável, no universo policial, liberar os futuros policiais deficientes do
exercício pleno da profissão e ponderar sobre o impacto disso em suas vidas e
na atividade institucional.
Não há consenso sobre quais variações
de funcionalidades e habilidades corporais caracterizam deficiência, e não por
acaso são recorrentes os litígios judiciais em busca da concessão de benefícios
previdenciários nesse campo. Deficiência não é doença, apesar do intenso debate
sobre a inclusão de doenças crônicas como ponte para a experiência da
deficiência, como seria o caso de pessoas em estágio avançado de infecção pelo
vírus HIV. Deficiência é um conceito complexo que reconhece o corpo com
impedimentos, mas que denuncia a estrutura social que aparta do convívio social
a pessoa deficiente. A construção desse conceito decorre do extenso debate
internacional sobre deficiência, marcado pelo modelo médico e pelo modelo
social.
Entre esses dois modelos teóricos há
uma mudança na lógica da causalidade da deficiência: para o modelo médico, a
causa da deficiência está no indivíduo; para o social, está nos arranjos da
sociedade, hostil à diversidade corporal. A primeira geração de teóricos do
modelo social apregoou uma rejeição ao corpo deficiente, como instinto para
promover a ideia de que a deficiência se explica a partir do contexto social no
qual o sujeito se encontra imerso e não a partir de um fato da biologia
individual. A primeira geração defendeu a premissa da independência como um
valor ético para os deficientes, na tentativa de provar que, retiradas as
barreiras ambientais e sociais e feitos os devidos ajustes arquitetônicos, os
deficientes não experimentariam restrições e exclusão.
Nos anos 2000, a segunda geração de
teóricos do modelo social mostrou que essa reivindicação era perversa para os
deficientes, pois a atenção ao corpo e o cuidado são um projeto de justiça
necessário em situações de desigualdade de poder, até porque nem todos arranjos
possíveis conseguirão promover a inclusão em patamar de absoluta igualdade com
os não deficientes — o que não significou abandonar a ideia central da primeira
geração sobre deficiência. Essa evolução teórica nos estudos sobre deficiência
pode servir como inspiração ao STF para o julgamento final da Reclamação
14.145, pois, tal como ocorreu no debate internacional sobre deficiência, mesmo
reivindicações bem intencionadas, como parece ser a do MPF, podem ter efeitos
reversos.
Apesar da repercussão negativa no
andamento regular do certame, a judicialização do debate sobre deficientes no
universo policial tem vantagens: a de dar algum tratamento de Justiça à
questão; a de revelar que essa é uma disputa da elite de deficientes; a de
provocar o questionamento sobre quem é o sujeito deficiente que a sociedade
almeja proteger; e a de desnudar como o fenômeno da deficiência é compreendido
pelo STF, algo tão importante para a reflexão sobre o que é deficiência para
fins de operacionalização de ações afirmativas, como é o caso da política de
reserva de vagas para deficientes em concursos públicos, em geral.
Por Arryanne Queiroz
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