O instituto do concurso público tem uma insólita semelhança
com o Deus do Antigo Testamento: ambos valorizam o sacrifício. Sem sacrifício,
para um e outro, é mais difícil as coisas acontecerem. Contudo, nesse ponto, a
lei a que estamos sujeitos, pelo concurso, é, digamos, mais rigorosa: ela exige
o auto-sacrifício, numa espécie de ritual de renúncia e autocontrole.
Concurseiros há tão experientes e habituados a abdicar dos prazeres do mundo
que, creio, alguns não teriam muita dificuldade de, se não bem-sucedidos nos
estudos, abraçar promissoramente uma vida monástica. Concordemos: estudar
austera e disciplinadamente também é, lá a seu modo, uma forma de ascetismo.
Obviamente, aqui, a renúncia e o sacrifício têm, ou pelo menos deveriam ter, um objetivo muito bem definido, um alvo perfeitamente delineado, que nada tem a ver com a purificação do espírito ou expurgo dos desejos da carne. Aliás, tenho visto que, em alguns concurseiros, um longo tempo de sacrifício e reclusão provoca inclusive efeitos opostos a estes. Mas é certo que o objetivo é um: ser aprovado. Essa é a meta. Adquirir conhecimento, aprimorar o raciocínio, ampliar a bagagem cultural, aperfeiçoar a memória não são os objetivos de um concurseiro, enquanto tal. Tudo isso vem apenas como consequência inexorável, um efeito natural do processo. É preciso distinguir claramente o que é objetivo e o que é consequência. Se a minha prioridade hoje fosse adquirir erudição, eu estaria debruçado na Enciclopédia Britânica. Se o meu foco fosse desenvolver a capacidade de abstração, estaria tentando compreender e dominar o modelo matemático da Teoria da Relatividade. Em vez disso, estou apenas estudando para concurso público. (Apenas?!!!)
Como o dia só possui 24 horas, não dá pra titubear ou hesitar em relação a qual é o verdadeiro objetivo do nosso retiro, a fim de tornar o mais eficiente possível o aproveitamento do tempo. E tempo, pelo menos para quem ainda não consegue viajar na velocidade da luz, é elemento cada vez mais escasso. A contradição aqui é: ganhar tempo é também perder tempo. Ganho tempo dedicando-me a algo valioso pra mim, o mesmo precioso tempo que perco deixando de me dedicar a todas as outras coisas que também me são caras. A vida é feita de trocas: é preciso perder algo para ganhar outro algo, que julgamos melhor. Vale para o estudo a mesma definição que Camões deu ao amor: “é um cuidar que ganha em se perder”. Eu “perco” tempo estudando hoje, para ganhar tempo lá na frente.
Mesmo assim, tem gente que não quer pagar o preço. Lembro-me de ter ouvido a seguinte pérola de um concurseiro que, à época, trabalhava oito horas por dia e tentava conciliar trabalho e estudo: “Eu estou disposto a abrir mão de tudo, menos da minha pelada nas quartas e sextas e da minha cervejinha aos sábados!”. Infelizmente, quem não quer pagar o preço, corre o risco de sair sem o produto. Não dá pra barganhar com a vida. Ou é ou não é. Sem meio termo. Como na canção de Lulu Santos, “a vida é mesmo assim, dia e noite, não e sim”.
Concurso público é pra todo mundo, sim. O problema é que nem todo mundo é pra concurso público. Ou realmente se tem ânimo para abraçar a causa e ir até o fim por ela, ou melhor será abrir espaço para quem realmente esteja disposto a fazê-lo. Quem fica na meia embreagem fatalmente acaba sendo atropelado – pelas circunstâncias, pela concorrência, pela própria indecisão. E, também, pela vida.
Autor: Professor Marchezan
Fonte: Site Ponto dos Concursos
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